Um dos erros mais frequentes da sociedade hodierna é considerar que, por ser democrática - e por não se conceber viver, hoje, numa sociedade que o não seja - todas as instituições e formas de expressão cultural têm de assentar numa qualquer forma de legitimação democrática. A escola não é democrática. A atribuição de um prémio literário ou artístico ou a simples apreciação estética não assenta num qualquer sufrágio democrático. A organização interna de um clube ou de uma igreja (ou mesmo de um partido, mas aqui com especiais cuidados) a que se pertence livremente e de que se sai de forma igualmente livre não tem de reproduzir todo o protocolo democrático exigível para a relação do Estado com os cidadãos.
Este erro é altamente pernicioso em si mesmo e também pela sua larga difusão, tendo-se apoderado, literalmente, do argumentário popular e ideológico contemporâneo.
Este erro é altamente pernicioso em si mesmo e também pela sua larga difusão, tendo-se apoderado, literalmente, do argumentário popular e ideológico contemporâneo.
A sociedade é e deve ser democrática, não só na exacta medida em que "o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos " segundo o enunciado de Túcidides (II, 37), mas também porque a sociedade se dotou de um sistema de "checks and balances" para aquilo que é comum a todos. Tal sistema, assumido na versão continental da separação dos poderes ou na versão anglo-saxónica da supremacia do Parlamento e da rule of law visa assegurar as liberdades individuais, protegendo-nos da «ditadura da maioria». Aquilo que é comum deve ser do interesse e da participação de todos. E à objecção antidemocrática de que o poder envolve um saber que não está ao alcance de todos deve ser devolvida a noção de que a decisão sobre aquilo que é comum deve ser propriedade plena do detentor do sensus comunis, isto é, do povo e a ideia (popperiana) de que a democracia não serve para colocar no poder os melhores, mas para retirar do poder aqueles que já não nos interessam.
Nada no princípio democrático obriga a que, numa sociedade democrática, todas as instituições e formas de expressão devam ser, ipso facto, democráticas. Por muito que almas caridosas o reclamem, a escola, por exemplo, não é nem deve ser democrática. Uma escola é o lugar da transmissão - palavra que arrepia os cabelos aos "pedagagos" -, da translatio studii da tradição e dos saberes. Transmitem os que sabem, isto é, os mestres que são, em regra, os mais velhos. Assim, uma escola não é democrática mas, pelo contrário, é e deve ser aristocrática e gerontocrática. Nela devem mandar os professores, porque sabem e apenas na exacta medida em que sabem. Os mais novos, os alunos, são os que não sabem e que, por definição estão aptos para o saber. Tal posição em nada os diminui, antes pelo contrário: liberta-os para o saber. Os projectos educativos, os projectos curriculares e os regulamentos internos das nossas organizações escolares deviam assentar sobre esta evidência. Mas eu sei que não é assim. Eu sei que se valorizam os «saberes» que as crianças e alunos já "transportam", mesmo que tais saberes sejam paupérrimos e redundantes. Eu sei que a transmissão é uma palavra sem valor no mercado pedagógico. Eu sei que a ideia do professor como instância do saber e, portanto, do poder está fora de moda. Eu sei que assumir que a escola e a sala de aula não são nem nunca foram democráticas simplesmente porque não podem ser tal, não tem direito de cidadania nos tempos actuais. Hélas!
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