segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O apagamento da Filosofia

A disciplina de Filosofia tem ocupado um lugar respeitável nos diversos ordenamentos curriculares dos últimos 30 anos. Na reforma curricular de 1979, por exemplo - a melhor estrutura curricular que conheci - a Filosofia ocupava um lugar central enquanto disciplina obrigatória para todos os cursos (tronco comum), situando-se no âmbito das disciplinas de «formação geral» dos 10.º e 11.º anos de escolaridade, com 3 horas por semana. O lugar central da disciplina era reforçado ao nível do 12.º ano - via de ensino, em que a Filosofia era a «disciplina-base» do 3.º curso, justamente o que dava acesso aos cursos das áreas das humanidades e das ciências sociais e humanas, incluindo o curso de Direito, usufruindo de 4 horas semanais. O prestígio da Filosofia reflectiu-se no incremento das publicações nessa área, na proliferação de revistas e no número crescente de traduções de textos clássicos e contemporâneos, sem paralelo em outras épocas históricas. Mesmo a introdução dos cursos técnico-profissionais não afectou o estatuto da disciplina, a qual era obrigatória mesmo nessa modalidade de ensino.
A reforma curricular de 1989 manteve o estatuto da disciplina nos 10.º e 11.º anos, atribuindo-lhe, no entanto, a infeliz designação de «Introdução à Filosofia», na sequência, aliás, da tentativa de eliminação da disciplina e sua substituição por «História das Ideais e da Cultura». Mas, ainda assim, a disciplina existia e em condições de igualdade, quer nos cursos de carácter geral, quer nos cursos tecnológicos. Ao integrar definitivamente o 12.º ano no ensino secundário, a disciplina de Filosofia perdeu a dignidade de disciplina fundamental e foi remetida para o elenco das disciplinas de «opção». No entanto, o facto de, avisadamente, as faculdades de Direito, por exemplo, elegerem a Filosofia como disciplina específica para acesso aos seus cursos, permitiu que a disciplina fosse bastante procurada. Razões que se prendem com a própria estrutura do programa da disciplina no 12.º ano mantiveram o ritmo e a qualidade das publicações e das traduções.
No que diz respeito ao ensino nocturno, a Filosofia tinha um estatuto similar ao que tinha no ensino diurno, existindo no Curso Complementar dos Liceus e no 12.º ano. Nem a introdução do ensino recorrente no nosso sistema educativo afectou de modo considerável o estatuto da Filosofia, sem prejuízo da extinção da via de ensino do 12.º, a exemplo do que aconteceu no ensino diurno.
O processo de  revisão curricular de 2001-2004 e as sucessivas alterações ao modelo deram alguns sinais contraditórios. Por um lado, aumentou-se a carga horária da disciplina em uma hora semanal (entretanto convertida em blocos) e estabeleceu-se o paralelismo entre o ensino diurno e o ensino recorrente por módulos capitalizáveis.  Por outro, as trocas-baldrocas a que a disciplina foi sujeita ao longo dos vários ensaios de revisão até 2004 - existia no 12.º ano; não existia no 12.º ano, trocada por Ciência Política; como não existia, o exame passou para o 11.º ano; afinal existe no 12.º ano, mas esqueceram-se de voltar a passar o exame para o 12.º ano! -, bem como a paulatina extinção dos cursos tecnológicos originou um resultado catastrófico. A disciplina praticamente só existe nos cursos de prosseguimento de estudos dos 10.º e 11.º anos; quase ninguém escolhe a disciplina no 12.º ano, dado que há disciplinas mais apetecíveis; depois de cerca de dois anos de experiência de exame nacional no 11.º ano (à semelhança de outras disciplinas) a disciplina deixou de estar sujeita a avaliação sumativa externa, i. é, a exame nacional. Nem mesmo para aceder aos cursos superiores de Filosofia é permitido ao aluno realizar exame de Filosofia! Somado a isso, a introdução dos cursos profissionais e a sua proliferação, e em que não está prevista a disciplina de Filosofia mas apenas uma excrescência chamada Área de Integração, levou ao quase desparecimento da disciplina, ao seu apagamento efectivo, estando os seus profissionais sujeitos à leccionação de mil-e-uma matérias que nos deveriam envergonhar a todos.
Para além dos óbvios prejuízos para a educação e para os alunos, o apagamento da Filosofia tem levado a um arrefecimento da produção filosófica, a uma rarefacção das traduções de textos filosóficos - a que as Edições 70, a INCM e a Porto Editora, por exemplo, nos tinham habituado - e a um esvaziamento do papel dos filosófos portugueses e das instituições filosóficas nacionais. Sinal muito evidente disso é o silenciamento de alguns projectos na blogosfera e na Internet em geral, como sejam o Centro para o Ensino da Filosofia, entre outros. As Universidades estão preocupadas com o assunto? Não me parece.

P.S.: O quase-extinto GAVE anunciou a realização de testes intermédias em Filosofia. Pelo que cheirisquei parece-me bem. Pode ser que ainda se salve alguma coisa...

As inutilidades didácticas

Há muito que o nosso sistema educativa abunda em inutilidades didácticas. Um caso muito especial são as disciplinas e áreas disciplinares criadas nos ensinos básico e secundário e também no ensino superior (aí o caso pia-mais-fino, chegando a haver situações em que se criavam licenciaturas que mais não eram que o desenvolvimento de capítulos de uma tese que alguém tinha feito: e de uma assentada criavam-se n cadeiras. Mariano Gago fez algum desbaste). No ensino não superior, foram criadas, decerto com intuitos bondosos e edificantes, áreas disciplinares como sejam as diversas áreas de Projecto (3.º ciclo do ensino básico e 12.º ano de escolaridade), o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica. As almas que as conceberam - Ana Benevente e seus sequazes - acreditam piamente que tais áreas contribuem positivamente para a aquisição de competências transversais e se constituem como poderosos auxiliares de outras disciplinas. O resultado (não me peçam número, gráficos e estudos!) é o que se vê. No caso da Área de Projecto do 12.º ano, estas actividades prejudicam seriamente a frequência das disciplinas propriamente ditas, fazem os alunos e as famílias gastarem dinheiro inutilmente e produzem resultados que nos deveriam envergonhar. Nem sequer se constituem como actividades de preparação para trabalhos de investigação no ensino superior: as universidades queixam-se, justamente, da incompetência dos nossos alunos em matéria de leitura, redacção e capacidades de pesquisa. Mas há pior. Sobretudo no ensino secundário, foram crescendo disciplinas que não correspondem a áreas científicas reconhecíveis, com estatuto epistemológico indefinido, ou que são, quando muito, matéria de nível pós-graduado. Quando era professor, cheguei a ter que ensinar Psicossociologia num curso tecnológico de animação social bem como a inefável Área de Integração nos cursos profissionais, uma mistela de coisa nenhuma. E qual a razão de se ensinar Ciência Política no 12.º ano, uma invenção de David Justino, em detrimento da Filosofia? E, mesmo, Direito, que as próprias faculdades desconsideram? Terá algum sentido aprender Antropologia ou, mesmo, Sociologia no ensino secundário como se aquilo que se visa alcançar com tal leccionação não fosse possível de alcançar através da História ou da Filosofia? A disciplina, que quase ninguém escolhe, de Clássicos da Literatura só existe como sintoma da má consciência de se ter esvaziado o Português justamente.. de Literatura. Um dia voltarei a esta questão que me parece gravíssima: os jovens portugueses estão praticamente impedidos de aceder ao cânone literário do seu país.
A outra razão para a criação dessas disciplinas prende-se com a dinâmica de publicações, colóquios, conferências, acções de formação que propiciam. Os autores dos programas são os autores dos materiais, são os organizadores das conferências e são formadores e repetem formação contínua sobre essas, digamos, temáticas por todo o país e ad nauseam. É um neverending story!
Enquanto isso, disciplinas fundamentais e aprendizagens de banda larga são claramente desconsideradas e subalternizadas, casos da Filosofia, da História, da Física e Química, da Biologia e Geologia. Um dia pagaremos caro. Já estamos a pagar.

P.S.: Agora que os constrangimentos orçamentais obrigam à extinção de, pelo menos, a Área de Projecto e o Estudo Acompanhado, os sindicatos de professores queixam-se do facto de que cerca de 5 mil docentes - ena tantos! - ficarem prejudicados... Então o problema é esse! Ainda haveremos de chegar à conclusão que as Novas Oportunidades eram, afinal, muito boas. A sua extinção prejudica muita gente e não apenas na 24 de Julho.